A lenda do pirata vitoriamario

A incandescida imaginação do vulgo, sempre inclinado, ao maravilhoso, acolhe e acaricia sedutoras e extravagantes lendas, como essa do pirata Vitoriamario – que chegou a convencer meio mundo – da existência de tesouros, que esse suposto ladrão do mar, após abandonar uma vida aventurosa e inçada de crimes, teria ido esconder-se, num sítio, dos arredores de Curitiba.
A esse misterioso personagem se prende a fama dos tesouros da Ilha da Trindade – divulgada há quarenta e cinco anos – mais ou menos – por um farmacêutico paulista, possuidor de velho documento, com a indicação do lugar exato onde, no solitário rochedo, distando 300 léguas da costa do Espírito Santo, jaziam as fabulosas riquezas, produto das piratarias exercidas, no Atlântico, pelo famoso flibusteiro.
Vitoriamario – segundo o dono do documento – seria nome de guerra, arranjado, para ocultar a verdadeira personalidade de um Lorde, talvez, filho segundo de alguma das grandes casas da Inglaterra, ingressado jovem, na marinha do seu país e da qual desertou, nos agitados dias do primeiro quartel do século passado, quando a Europa – sacudida, pelas guerras napoleônicas, para entregar-se, às criminosas atividades do ofício de pirata – até que um dia – capturado o seu navio, por um vaso de guerra britânico, descobriu o comandante deste, no capitão prisioneiro, um antigo colega da escola naval, resolvendo, para não enforcá-lo, como mandavam as leis penais inglesas, desembarcá-lo, na costa mais próxima – a Barra de Paranaguá – sob condição de se internar no continente e nunca mais aparecer.
Deu-lhe três libras esterlinas e uma bíblia, únicos haveres, com que contou o infeliz, para fazer vida nova no país que, então, se ensaiava, para a independência. Seria, nessa época, que o estranho personagem, rumando ao planalto, por julgar perigosa a permanência à beira-mar, foi assentar residência em Curitiba, de onde não mais saiu, falecendo, em avançada idade, entre os anos de 1880 e 1882 – conforme o testamento de coveiros que nos afirmaram, em 1910 – tê-lo conhecido, numa chácara do Pilarzinho – originando-se, deste fato, a suspeita de estarem ali, enterrados os supostos tesouros!
Provado que, realmente, existiu, na Curitiba dos meados do último século, um estrangeiro, cuja vida se cercava de grande mistério, e se este era o indivíduo egresso da marinha inglesa, ao qual faz referência a narrativa do farmacêutico Barbosa – neto do funcionário imperial – que residia no Paraná, dele recebera a confidência do seu passado e a bíblia, com os “croquis” da Ilha da Trindade, assinalando o local do tesouro, fica esclarecida a impossibilidade de existir este, no Pilarzinho, pois o fato de haver Vitoriamario que desembarcado, apenas, com três libras da generosa dádiva do seu compatriota e antigo camarada, exclui toda a hipótese de subir ao planalto carregando as riquezas.
Na época era mui comum aportarem ao Brasil, indivíduos fugidos ao ajuste de contas, com a justiça do país natal e que, para refazerem a vida, no virgem ambiente americano e esquecerem o tenebroso passado, tinham a cautela de não revelar a verdadeira identidade.
Saint-Hillaire – em 1820 – visitando Paranaguá, encontrou, na Ilha da Cotinga um alemão de avançada idade, ali estabelecido, há muito tempo e ‘que havia sido muito atormentado por falta, contra a disciplina e os costumes’ – diz o notável botânico francês.
Perguntou-lhe o que o fizera vir a um país tão afastado do seu. – “Erros, extravagâncias” – respondeu-lhe, lacônico, o exilado. Como esse, outros muitos teriam acostado ao nosso país, e daí a possibilidade da vinda do enigmático inglês do Pilarzinho – cujo nome Vitoriamario – não seria por ele adotado, tratando-se de provável corruptela indígena de Saulmers (pronúncia Sulmir).
A dúvida, porém, ocorre, quando à qualidade de antigo pirata que se lhe atribui, bastando recorrer a argumentos cronológicos, para provar o infundado de tal suposição: dado o falecimento de Vitoriamario, em 1882, aos 90 anos de idade prováveis, teria ele nascido em 1792 e supondo que, em 20 anos, no mínimo, tenha desertado da trota de guerra inglesa, temos 1812, para início da sua carreira criminosa, mas numa época em que a pirataria já estava, praticamente, abolida, no Atlântico, permanecendo, apenas, no litoral dos estados barbarescos, ao norte da África, até que a conquista francesa a extinguiu de vez.
O Corso – forma legal de pirataria autorizada por governos em guerra, para causar danos ao inimigo e o tráfico de escravos, esses sim, estavam em vigor. As repúblicas americanas em luta pela independência concediam cartas de Corso aos que se propunham perseguir e saquear navios espanhóis e a indústria do transporte de negros da África, para a venda no Brasil e nos estados meridionais da América do Norte, se exercia franca e prosperamente, sem embargo da perseguição dos cruzeiros ingleses.
Ora, dedicando-se ao Corso ou ao tráfico da escravatura – ambos lucrativos.